Lembro-me como se fosse ontem... Casaco vermelho e azul marinho, chupeta na boca, olhar de malandro com as sardas na cara. O narizinho era quase inexistente e, quando com sono, a mão era levada até à orelha como maneira de embalar.
Sempre muito atento e, sem uma única palavra dizer em português, fazia-se explicar pelo indicador da mãozinha pequena dos seus três anos de idade. O cabelo era longo, liso e macio com os cuidados da mamã que o deixara em terras lusitanas ao cuidado do pai (?!) e da avó.
Foi crescendo, aprendendo a língua de Camões e a fazer birras para atingir fins com a célebre frase "... eu atio po chão!". Foi erguendo-se forte na vida, ainda que desamparado - não me quero alongar no desamparo - e foi sendo o meu motivo de orgulho.
Ainda enquanto pequeno, a mamã, pelo natal, dizia que ele não gostava de bacalhau e foi precisamente nesse dia que começou uma história de amor por um filho que nunca foi!
Então dizia a mamã que o menino não gostava de bacalhau e, ao meu colo, come as batatas cozidas, em forma de puré, bem portuguesas e dá as primeiras dentadas no bacalhau regado com azeite e desfiado para "enganar os tolos"... ao ver aquilo, a mamã, francesa, exclama o seguinte: "És mesmo português!", e sorri.
Ainda que, sempre de mal com a vida, o coração é dócil, de choro fácil, emotivo, temperamental e sempre preocupado, enquanto pequeno, com o grande amor da sua vida... a avó. Recordo-me uma noite em que a avó saiu para ir ver fados ao Teatro Sá da Bandeira e, enquanto não chegava a casa, aquele menino com sono não dormia até ao regresso da sua heroína. Assim que ouvia a porta da rua a abrir, interrogava: "Vó, és tu?" e a avó, regressada dos seus afazeres lá lhe descansava a alma ao dizer que tinha chegado e ele acabava por resistir ao sono e dormir.
Parecia muito adulto e responsável para a idade que tinha, sendo apenas uma criança, como todas as outras da sua idade.
Sempre tivemos uma relação muito próxima, de conversas e segredos só nossos, de desabafos, de momentos felizes na mais pura brincadeira, de ternura e de sinceridade e fidelidade. Hoje tudo mudou, nos estudos, onde foi sempre o meu maior motivo de orgulho pelas excelentes notas que tirava, regrediu... Deixou-se influenciar pelas más companhias, foi crescendo com má educação e não conseguindo discernir as hierarquias, tratando sempre toda a gente como se de colegas de escola se tratasse.
Hoje, com 15 anos, fuma, bebe álcool, tem comportamentos de delinquente e está pior do que nunca. Perdi a confiança total nesse miúdo que outrora vi como um filho, que me mente, que mostra desinteresse pelo futuro e que procura ou está sempre no meio dos problemas. Tem a avó como maior referência materna e, em vez de lhe dar descanso e encher de felicidade e orgulho, só lhe rouba anos de vida e enche-lhe o coração de desgosto... É pena! Não saber retribuir tudo aquilo que esta mulher fez por ele e os sacrifícios que passa para não lhe faltar com nada e não é o seu dever, de todo, mas é avó... muito mais do que isso, é uma Super-Avó!
É um caso perdido, completamente, embora a culpa não seja apenas dele, mas uma vez mais, não me vou alongar nesse assunto, os culpados tomarão partido para se assumirem, ou não.
Tem 15 anos, é certo... tem muito para crescer, mas no meu ponto de vista o futuro não augura nada de bom, espero com sinceridade estar 200% enganado.
Atualmente, o que para mim era um motivo de orgulho, agora é uma tremenda baldada de água fria, isto para utilizar uma expressão mais leve. Estou triste, impotente por mim, pela avó e por todos os que gostam dele que, sinceramente, já não são muitos, pois não há quem aguente tanta má educação e estupidez num rapaz que tinha e tem tudo para ser uma criança/homem decente, educado e com boa índole pela criação que teve e pela qual todos os seus primos passaram.
Espero que este texto seja lido de forma introspetiva e que sirva de reflexão para um futuro melhor e como um abre-olhos para surtir efeito a médio prazo, ao visado e aos mais próximos.
Filipe Tiago Araújo